20 de novembro de 2016

Ela


Baseado no romance Oh..., de Philippe Djian, Ela, de Paul Verhoeven (2016), gira em torno da história de Michèle Leblanc (Isabelle Huppert), fundadora e directora de uma empresa de videojogos. Como vamos descobrindo ao longo do filme, a vida de Michèle ficou marcada por um acontecimento sinistro na sua infância, em que, num episódio psicótico agudo, o pai, católico fervoroso e cidadão exemplar, matou todos os filhos e animais dos vizinhos. Talvez este seja o tema mais interessante do filme: a possibilidade de a violência e a loucura se manifestarem de modo inesperado no contexto da normalidade supostamente mais inofensiva. Este tópico é declinado de acordo com as regras amorais dos jogos de vídeo caracterizados pela violência contra as mulheres. A recusa da protagonista de recorrer à polícia para se proteger das ameaças e dos ataques de que é alvo permite que o seu quotidiano seja contaminado, sem violação das regras do realismo, por este tipo de universo. Apesar de depender de uma protagonista feminina e ser difícil de imaginar sem a figura forte de Isabelle Huppert, Ela é um filme com conteúdo misógino. Quase todas as personagens masculinas são retratadas como figuras fracas e vulneráveis a determinadas debilidades ou doenças (o próprio atacante de Michèle se destaca pela simpatia e bonomia, o filho é um irresponsável gentil), enquanto a protagonista, a única que consegue manter-se à tona, é filmada como uma criatura manipuladora e perigosa – também por fazer o que faz sendo mulher, como o próprio título do filme sublinha. Nem sequer lhe falta um gato, como se espera das bruxas. (O tema arcaico do carácter maléfico das mulheres que se atrevem a tentar «actividades próprias dos homens» ainda não se esgotou, como também pudemos constatar nas recentes eleições norte-americanas.) Em suma, Ela é um filme interessante em alguns aspectos, por ajudar a pensar sobre o que é a normalidade e sobre a representação das mulheres com poder, mas deve ser visto com algum distanciamento irónico. Felizmente, nem a vida nem todos os filmes se assemelham a jogos de vídeo, ainda que por vezes pareçam arriscadamente próximos desse contexto.