14 de abril de 2024

Retrato de Família com Teatro de Marionetas


A certa altura de Retrato de Família com Teatro de Marionetas (Philippe Garrel, 2023), o pai morto (Aurélien Recoing) aparece num sonho da filha, Martha (Esther Garrel), e pede-lhe que não desista da companhia de teatro que ele dirigia. Noutro filme, isto seria o mote para um final comovente em que a filha, contra ventos e marés, faria renascer a companhia das cinzas (ou, neste caso, dos destroços que resultaram da destruição provocada por uma tempestade) para honrar a memória do pai. Não é nada disso que se passa: nas cenas finais, Martha e os seus dois irmãos seguem os seus caminhos, convencidos de que o futuro não passa por percorrerem as cidadezinhas de província a manipular fantoches. O cinema de Garrel é assim: as pessoas amam-se, juntam-se, separam-se, adoecem, morrem, insistem, desistem. A câmara mostra-as nesses momentos da vida, com uma naturalidade e uma secura que coexistem com um lirismo discreto. Estas características são comuns às longas-metragens de Garrel, tal como o são alguns elementos da equipa técnica, incluindo a equipa de co-argumentistas composta por Arlette Langmann, Jean-Claude Carrière (que entretanto morreu) e Caroline Deruas. A presença dos três filhos de Garrel no elenco, a par da de Deruas (ex-companheira do realizador e mãe de Léna Garrel) faz inevitavelmente pensar no paralelismo entre a vida real e o enredo, que acompanha personagens em busca de um percurso fora da tradição familiar e da tutela paterna. Porém, os méritos de Retrato de Família… não dependem de leituras autobiográficas. Trata-se, acima de tudo, de um filme admirável sobre a tensão entre o desejo de honrar uma tradição e o anseio de emancipação, que já era o tema principal do filme anterior de Garrel, O Sal das Lágrimas (2020). Outro aspecto que aproxima esta obra de outras do cineasta é a inteligência com que cria distanciamento graças a uma voz-off que soa por vezes algo anacrónica, como se se destinasse principalmente a relembrar-nos que estamos a ver cinema, e que não existe a veleidade de mostrar a vida “como ela é”. Outro tipo de distanciamento é o que se sente nas cenas, muito belas, em que os actores da companhia manipulam as marionetas durante os espectáculos. O contraste entre o trabalho físico das vozes e dos corpos e a simplicidade burlesca dos movimentos dos bonecos, que ocupam a parte superior do plano, evoca o trabalho técnico e o esforço subjacentes a qualquer filme, que se diluem no naturalismo aparente e na fluidez da narrativa. Retrato de Família com Teatro de Marionetas (inesperada tradução do título original, Le Grand Chariot) recebeu o Urso de Prata no mesmo Festival de Berlim que premiou Sobre L’Adamant e Céu em Chamas. Não se tem ouvido falar muito dele, mas é um dos melhores filmes que este ano têm estreado em sala.

Outros filmes de Philippe Garrel no Cinéfilo Preguiçoso: L'Ombre des Femmes (2015), O Amante de Um Dia (2017), O Sal das Lágrimas (2020).

7 de abril de 2024

Ursos Não Há

De certeza que poucos realizadores contemporâneos terão reflectido sobre a importância do acto de filmar e, por extensão, do próprio cinema, com a urgência e a intensidade de Jafar Panahi. Mesmo depois de ter sido proibido de filmar pelo governo iraniano, em 2010, Panahi continua a realizar e fá-lo com uma liberdade de pensamento e uma ironia surpreendentes, tendo em conta o contexto que o condiciona e os perigos a que se expõe. Em Ursos Não Há (2022), Panahi assume mais uma vez a sua própria personagem: um realizador de meia-idade cordial e cheio de boa-vontade, mas perplexo com as complicações, regras e tradições que dificultam a vida das pessoas e lhes desgastam a vontade de viver, a ponto de conduzirem a desfechos trágicos. A personagem de Panahi instala-se numa aldeia isolada, com acesso limitado à rede telefónica e à Internet, perto da fronteira com a Turquia, para realizar à distância um filme rodado neste país, inspirado pela história (que mais tarde percebemos ser «real») de dois exilados iranianos que procuram asilo em França. As actividades do realizador, com os seus aparelhos que captam imagens, são encaradas com desconfiança pelos aldeãos, que cultivam uma atitude simplória, mas esta situação torna-se problemática quando o primeiro, sem dar por isso, tira uma fotografia a um jovem casal que mantém uma ligação clandestina. Obviamente, esta aldeia, apesar dos contrastes explorados pelos seus habitantes em relação à vida na cidade, é um microcosmo que exprime as tensões que caracterizam todo o Irão: uma atmosfera concentracionária em que qualquer pormenor, por muito insignificante que pareça, é pretexto para o exercício de uma autoridade e de um controlo violentos e incompreensíveis, por meio da imposição de regras e convenções que já não fazem sentido para ninguém. A denúncia de Panahi aplica-se também às condições de vida dos exilados na Turquia, sugerindo que a arbitrariedade, o preconceito e a injustiça não são exclusivos do Irão. O título do filme vem de uma conversa entre o realizador e um desconhecido, que lhe explica que, apesar de os «ursos» que são invocados na aldeia para impedir as pessoas de fazerem determinadas coisas não existirem, são eficazes para inspirar medo, à semelhança do que se passa com os inúmeros rituais que já perderam há muito o seu significado, ou nunca o tiveram, mas continuam a ser cumpridos para ameaçar as pessoas. Ursos Não Há desenvolve-se num crescendo de tensão que mostra que tanto a fotografia como o filme dentro do filme, apesar de inicialmente parecerem apenas actividades artísticas, são afinal muito mais do que isso, na medida em que examinam e questionam a vida real e têm consequências que podem ser decisivas. Se há quem se interrogue sobre a importância do cinema nos tempos que correm, Panahi responde de modo inequívoco: sem cinema, não há vida; o cinema é indissociável da vida. Ursos Não Há recebeu o Prémio Especial do Júri no Festival de Veneza, em 2022. Esperemos que Panahi continue a poder fazer e mostrar os seus filmes, e que a liberdade criativa que, milagrosamente, tem conseguido preservar um dia se transforme em liberdade plena.

Outros filmes de Jafar Panahi no Cinéfilo Preguiçoso: O Círculo (2000); Táxi (2015); Três Rostos (2018).

24 de março de 2024

O Ano Passado em Marienbad | Toute la Mémoire du Monde

O Cinéfilo Preguiçoso decidiu ver, em DVD, O Ano Passado em Marienbad (1961), de Alain Resnais, complementado pelo documentário Toute la Mémoire du Monde (1956), do mesmo realizador, disponível no YouTube. Saltam à vista algumas semelhanças entre os dois filmes. Em ambos, percorremos corredores austeros em lentos travellings e o cenário é mostrado de maneira a transmitir uma impressão opressiva, quase de cárcere. Tanto o hotel barroco da longa-metragem de 1961 como o edifício da Biblioteca Nacional, objecto do documentário de 1956, são filmados como se fossem buracos negros que absorvem e fixam a informação (os diálogos estéreis das personagens, os livros arquivados em estantes recônditas), e em ambos é esboçado um movimento centrífugo que contraria esse esclerosamento. Em O Ano Passado em Marienbad, a fuga das personagens principais está pendente dos esforços do homem para despertar uma recordação na mulher que a arranque à condição de personagem de uma peça que se repete, como se fosse um mecanismo accionado num passado distante. Em Toute la Mémoire du Monde, o movimento para fora coincide com a descrição dos procedimentos desencadeados pela requisição de um livro por parte de um leitor, num percurso inverso ao que transportou o livro do mundo exterior para a Biblioteca. Contudo, convém não levar demasiado longe estas comparações; em muitos aspectos, estamos perante filmes completamente diferentes. O documentário possui um alcance pedagógico e objectivo que o distingue nitidamente da construção ficcional abstracta filmada por Resnais a partir de um texto de Alain Robbe-Grillet. A colaboração entre escritor e cineasta é, aliás, uma das marcas distintivas que Resnais manteve durante a sua longa carreira: o trabalho sobre o texto, muitas vezes escrito de propósito para o cinema, e a tentativa, quase sempre bem-sucedida, de o converter num objecto cinematograficamente estimulante. Os exemplos são numerosos, mas talvez se possam citar, em jeito de ilustração, Hiroshima Meu Amor (1959), com Marguerite Duras, e Providence (1977), com David Mercer. O Ano Passado em Marienbad, que ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza, teve um impacto enorme nos meios cinéfilos da altura e, ao que consta, na sociedade em geral, pela dificuldade de se decifrar nele uma linha narrativa inequívoca. Seria possível, nos tempos que correm, um filme ser assunto de debate no espaço público, a não ser por um motivo escabroso ou colateral ao seu valor artístico? É de duvidar. Ao mesmo tempo, não podemos deixar de nos perguntar se a discussão foi tão intensa e generalizada como se afirma. A tendência para mitificar leva, por vezes, a exageros retrospectivos. Se nos limitarmos a olhar para o filme tal como chegou aos olhos contemporâneos, sessenta e três anos depois de ser realizado, constatamos que o rigor estético e intelectual e a ousadia de transpor o ideário do nouveau roman para o cinema continuam a fazer dele um objecto fascinante, que se presta a numerosas leituras e interpretações graças à sua riqueza, e não por culpa de indefinição e tibieza, como é muitas vezes (demasiadas vezes) o caso, noutros filmes.
 
O Cinéfilo Preguiçoso regressará depois da Páscoa. Boa pausa para todos.

17 de março de 2024

Saint Omer

Considerado pela crítica um dos melhores filmes de 2022 e premiado com o Leão de Prata no Festival de Veneza, Saint Omer (Alice Diop, 2022) estreou na TV Cine no dia 14 de Março e ainda bem que o Cinéfilo Preguiçoso reparou nisso. Esta longa-metragem tem alguns pontos em comum com o excelente Anatomia de Uma Queda (Justine Triet, 2023): são ambos «filmes de tribunal», em que assistimos ao julgamento de uma mulher desenraizada, tratada como outsider. Nos dois casos, somos convidados implicitamente a reflectir sobre as pressões a que as mulheres estão sujeitas numa sociedade não só patriarcal e misógina, mas também, no filme de Diop, colonialista e racista. Em ambos, nos interrogamos se estas «forças maiores» podem ou não ajudar a desencadear um crime. Saint Omer e Anatomia de Uma Queda são também, cada um à sua maneira, filmes poderosíssimos, baseados em palavras e depoimentos, com argumentos notáveis e excelentes actrizes: Anatomia de Uma Queda é mais cerebral; Saint Omer convoca referências obscuras, relacionadas tanto com a mitologia grega (o mito de Medeia) como com a cultura senegalesa (feitiçaria, etc.). Com autoria de Amrita David e da escritora Marie N’Diaye, o argumento do filme de Diop baseia-se nas transcrições do julgamento de Fabienne Kabou, uma estudante senegalesa, imigrante em França, que matou a sua própria filha de quinze meses; segundo Diop, que antes deste filme realizou apenas documentários, estes depoimentos já tinham um tom literário que considerou inspirador. Rama, a personagem principal do filme, é uma professora de literatura que assiste ao julgamento, identificando-se com a acusada, e grava os depoimentos, que depois escuta atentamente no quarto de hotel. A propósito do peso das palavras no filme, num dos seus momentos mais flagrantemente irónicos, uma professora de Filosofia explica que desencorajou a protagonista de estudar Wittgenstein na sua tese porque uma mulher africana nunca poderá compreender um filósofo austríaco e deve escolher um tema «mais próximo da sua cultura» – sem perceber que, por essa ordem de ideias, Wittgenstein também seria inacessível a uma mulher francesa como ela e a obra do próprio Wittgenstein se tornaria insignificante, por se circunscrever a um público demasiado restrito. Esta referência a Wittgenstein, de certo modo, chama a atenção para o que é inacessível às palavras («aquilo de que não se pode falar»). Por sua vez, do ponto de vista visual e conceptual, através de grandes planos, de clips de outros filmes, ou de flashbacks nem sempre fáceis de decifrar, que remetem para a infância de Rama, Alice Diop procura uma maneira de mostrar o que não pode ser visto. Na direcção de fotografia, temos Claire Mathon, que desempenhou as mesmas funções nos dois últimos filmes de Céline Sciamma: Retrato de Rapariga em Chamas (2019) e Petite Maman (2021). Curiosamente, Saint Omer partilha com Petite Maman um dos seus temas mais importantes – a relação entre mães e filhas, que, num dos momentos mais fortes e inesquecíveis do filme, leva uma personagem a descrever todas as mulheres como monstros, num tom que não é pejorativo. Em Saint Omer, temos a surpreendente tour de force de a reflexão sobre a maternidade se processar a partir de um infanticídio – porque, mais do que sobre a culpa ou a inocência, a longa-metragem de Diop é sobre a complexidade feminina. Vamos continuar a pensar neste filme durante muito tempo.

10 de março de 2024

Corpo e Alma

O Cinéfilo Preguiçoso segue com interesse uma rubrica do canal YouTube do site Konbini em que pessoas ligadas ao cinema escolhem DVDs das prateleiras de um videoclube parisiense e explicam as suas opções. Num destes vídeos, Wim Wenders elogiou Corpo e Alma (2017), um filme da realizadora húngara Ildikó Enyedi premiado com o Urso de Ouro no Festival de Berlim. Os elogios e a descrição do filme suscitaram a curiosidade do Cinéfilo Preguiçoso, que tratou de comprar o DVD. Corpo e Alma segue a história de Endre, director de um matadouro, e Mária, recentemente contratada para o posto de responsável pelo controlo de qualidade. Nas entrevistas de um inquérito interno, motivado por um furto na farmácia do matadouro, a psicóloga responsável descobre que Endre e Mária têm sonhos semelhantes, que giram em torno de um veado e uma corça, vagueando numa floresta gelada em busca de alimento. Esta descoberta, que aproxima Mária e Endre, nunca é usada para explorações metafísicas: ao contrário do que o título poderia sugerir, não há uma tentativa assumida de explorar o contraste entre a existência terrena das personagens e uma dimensão onírica ou transcendente. Os sonhos partilhados são um elemento que nunca é explicado e que as personagens aceitam sem demasiado espanto. Esta decisão corajosa de usar os sonhos como dispositivo narrativo encontra paralelo no comedimento estilístico do filme. Embora tenha um ponto de partida insólito, a trajectória convergente das personagens é relativamente linear, sendo mostrada com simplicidade, apesar dos inevitáveis recuos e mal-entendidos. A personagem de Mária apresenta traços habitualmente associados ao espectro do autismo ou transtorno obsessivo-compulsivo, e o filme ressente-se, por vezes, de uma caracterização quase unicamente baseada nestas características. Compreende-se, no entanto, que Enyedi queira mostrar um percurso de aprendizagem sentimental a partir do zero quase absoluto: Mária tem de aprender tudo, desde a importância do contacto táctil até ao poder da música, e alguns desses momentos são dos mais conseguidos. Ficamos com a impressão de que Corpo e Alma partiu de uma única ideia de argumento bem definida e que explora essa ideia com inteligência e contenção. (E quem nos dera que se pudesse dizer o mesmo de tantos filmes que soçobram devido ao peso das intenções e dos significados com que o cineasta os sobrecarrega!) É também um filme que sugere que uma mudança de vida pode depender de acasos e fenómenos que, de tão absurdamente arbitrários, remetem para uma dimensão lírica, que não nos cabe tentar explicar, mas sim mostrar e respeitar.

3 de março de 2024

Vanya on 42nd Street

Um dos momentos mais inesquecíveis de Vanya on 42nd Street (Louis Malle, 1994, disponível no YouTube) é o início: os actores/personagens percorrem as ruas movimentadas de Nova Iorque em direcção ao New Amsterdam Theater, num edifício abandonado na 42nd Street, para participarem numa espécie de representação informal da peça Tio Vânia, de Tchékhov. (A primeira vez que o Cinéfilo Preguiçoso viu este filme foi em Paris, num primeiro de Maio chuvoso de 2006. Como era Dia do Trabalhador, muitas coisas estavam fechadas, mas os cinemas continuavam a funcionar. Foi como se a escolha da sessão, o percurso até ao cinema e a espera na fila para a bilheteira também fizessem parte do filme.) Dentro do New Amsterdam Theater, os actores e a assistência, um grupo de convidados do encenador André Gregory, conversam descontraidamente – quando damos por isso, o que inicialmente parecia um diálogo de circunstância afinal já pertence à peça. Esta diluição de fronteiras entre vida e teatro é uma das características mais interessantes do filme de Louis Malle, que aqui adopta uma abordagem próxima da do documentário. Este filme nasceu quando o realizador assistiu a uma das representações informais que Gregory organizou desta peça, ao longo de cinco anos, em pequenos teatros ou outros espaços alternativos, às vezes até em apartamentos de amigos. Os actores de Vanya on 42nd Street (entre os quais se destacam Wallace Shawn, Julianne Moore, Brooke Smith, Larry Pine) conhecem tão bem o texto – uma adaptação de David Mamet, a partir de uma tradução literal de Vlada Chernomordik, que preserva a agilidade dos diálogos sem perder a sua literariedade – que parecem situá-lo na sua própria vida. A peça de Tchékhov, apesar de ser sobre russos do século XIX que vivem num sítio isolado e se interrogam sobre o sentido das suas vidas, poderia ser sobre aqueles nova-iorquinos que lhe dão vida num teatro em que não podem usar o palco porque umas ratazanas roeram umas cordas – ou até sobre nós. Aliás, é interessante notar como este texto de Tchékhov, graças à concentração da acção em determinado espaço, ao entrecruzamento das relações das personagens e aos confrontos verbais entre elas, tem funcionado como fonte de inspiração cinematográfica. Só no Cinéfilo Preguiçoso, já foi referido a propósito de Setembro (Woody Allen, 1987) e de Drive My Car (Ryusuke Hamaguchi, 2021). Há alguns pontos em comum entre este Vanya on 42nd Street e o excelente My Dinner with Andre (1981), em que Louis Malle já tinha trabalhado com André Gregory e Wallace Shawn: em ambos se filmam conversas entre personagens que reflectem sobre a sua própria vida. Tanto a conversa entre Gregory e Shawn como a representação da peça, a que assistimos em tempo real, podem transmitir a ilusão de que a câmara é usada como mero dispositivo de captação, num registo próximo do documentário. Com discrição e inteligência, Malle realizou estes dois objectos cinematográficos rigorosos e exaltantes, muito mais complexos e trabalhados do que à primeira vista pode parecer.

Outros filmes de Louis Malle no Cinéfilo Preguiçoso: Os Amantes (1958); Fogo-Fátuo (1963).

25 de fevereiro de 2024

Os Excluídos

O Cinéfilo Preguiçoso interroga-se muitas vezes sobre o que pode levar realizadores talentosos, com abundância de meios à sua disposição, a optarem por fazer filmes tão obedientes a convenções e tão pródigos em lugares-comuns e receitas narrativas que já foram usadas até à exaustão. Essa interrogação justifica-se perante Os Excluídos, de Alexander Payne (2023). Este filme é a enésima versão de uma história protagonizada por personagens que parecem nada ter em comum, mas descobrem afinidades inesperadas quando as circunstâncias as forçam a conviver. Neste caso, as circunstâncias são umas férias de Natal numa escola privada da Nova Inglaterra, no início dos anos 70: um professor de História irascível, um aluno em conflito com a mãe e o padrasto, e uma cozinheira que acabou de perder o filho ficam sozinhos na escola, o primeiro por incumbência, os outros por não terem para onde ir. Ao fim de dez minutos, qualquer espectador já percebeu para onde o filme se encaminha. Aos poucos, as personagens revelam traumas, inseguranças e aspirações que as aproximam, quebrando a hostilidade inicial. A mensagem é cristalina e, reconheça-se, louvável: todas as pessoas têm alguma coisa para ensinar, a natureza humana é a mesma, independentemente do estatuto social, da idade e do percurso. A espaços, em particular no segmento passado em Boston, há cenas bem conseguidas e convincentes que, no entanto, não chegam para dissipar a sensação de déjà vu: diálogos, situações e dinâmicas assemelham-se a muitos outros que qualquer cinéfilo já viu inúmeras vezes. É um exercício interessante estabelecer paralelos com obras como The Breakfast Club (John Hughes, 1985), sobre um grupo de estudantes que cumpre um castigo numa escola deserta, ou The Shining (Stanley Kubrick, 1980), onde a acção se passa nos corredores vazios de um hotel isolado pela neve – para citar apenas dois exemplos de filmes que, partindo de pressupostos semelhantes, se distinguem pela originalidade e pela capacidade de evitar o pântano das ideias feitas, ao contrário de Os Excluídos. Não se pode, porém, dizer que este seja um filme inteiramente falhado. As personagens são credíveis, Paul Giamatti é um grande actor, a competência técnica é inegável e alguns exteriores caracterizam-se por uma beleza tranquila e singela que é realçada pela excelente banda sonora. Ainda assim, é compreensível que o espectador saia da sala a pensar que o cinema pode ser muito, muito mais do que aquilo que viu desfilar diante dos seus olhos nas duas horas anteriores.
 
Outro filme de Alexander Payne no Cinéfilo Preguiçoso: Sideways (2004).